RIO - Escrito no século XIX pelo novelista francês Jules Verne, o clássico da ficção científica “Viagem ao centro da Terra” conta a história de um cientista que descobre uma passagem por um vulcão na Islândia, um “portal” para o interior do planeta, onde encontra um mundo habitado por seres pré-históricos do qual só escapa por outro vulcão na Itália. Na vida real, no entanto, sabe-se que, sob a relativamente fina crosta, a estrutura da Terra pode ser dividida em camadas concêntricas como uma cebola, basicamente com o chamado manto, um oceano de magma (rocha derretida), circundando um núcleo externo de ferro líquido, que por sua vez abriga um núcleo interno de ferro maciço (e um pouco de níquel).
Pelo menos era assim que pensavam os cientistas. Com uma nova abordagem na análise das reverberações em nosso planeta produzidas por grandes terremotos, um grupo de pesquisadores dos EUA e da China descobriu que esse núcleo interno de ferro sólido é dividido em duas regiões com características distintas. Um achado que pode revelar mais detalhes sobre o processo de formação da Terra na infância do Sistema Solar, há cerca de 4,6 bilhões de anos, e talvez até ajudar na busca de planetas rochosos parecidos com o nosso na órbita de outras estrelas.
— Embora o núcleo interno seja pequeno, menor do que a Lua, ele tem características realmente interessantes — conta Xiaodong Song, professor de geologia da Universidade de Illinois, nos EUA, e líder do estudo, publicado na última edição da revista “Nature Geoscience”. — Isso tudo pode nos dizer mais sobre como nosso planeta se formou, sua história e outros processos dinâmicos da Terra, guiando nossa compreensão sobre o que está acontecendo em suas profundezas.
‘Ecos’ de terremotos
As ondas sísmicas geradas pelos terremotos percorrem o interior da Terra, sendo refletidas, desviadas ou freadas de acordo com a composição e propriedades físicas do que encontram pela frente. Com isso, há décadas os cientistas usam esta técnica para estudar a estrutura interna de nosso planeta, semelhando um médico que enxerga o interior do corpo dos pacientes num ultrassom. Mas, em vez de se focarem no choque inicial produzido pelos terremotos, os pesquisadores liderados por Song usaram uma nova tecnologia para coletar e refinar dados sobre as ondas que continuaram a “ecoar” depois dos tremores, assim como um sino continua a ressoar após o toque alto que se segue ao golpe de um martelo.
— Acabou que os sinais coerentes melhorados por esta tecnologia se mostraram mais claros do que os gerados pelo toque inicial — destaca Song. — A ideia básica deste método circula há algum tempo, e outras pessoas o usaram em outros estudos próximos da superfície, mas decidimos observar todo o caminho até o centro da Terra.
Segundo Song, esta abordagem revelou uma surpresa sobre o interior de nosso planeta, embora bem diferente da descrita por Verne: o núcleo interno, outrora visto como uma esfera maciça e razoavelmente uniforme de ferro, na verdade tem uma estrutura mais complexa. Enquanto na camada externa do núcleo os cristais metálicos estão alinhados na direção Norte-Sul, na parte mais interna eles apontam no sentido Leste-Oeste. Além disso, estes cristais internos do núcleo parecem ter um comportamento diferente do dos externos, numa indicação que eles também podem ter uma estrutura e composição diferentes.
— O fato de termos duas regiões (no núcleo interno) tão distintas pode nos dizer algo sobre como ele tem evoluído — acredita Song. — Por exemplo, ao longo da história da Terra, o núcleo interno pode ter passado por uma mudança dramática no seu regime de formação, o que pode guardar a chave de como nosso planeta se formou. Alcançamos, literalmente, o centro da Terra.
Para Simon Redfern, professor de Ciências da Terra da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, se a descoberta da existência de um “núcleo do núcleo” do planeta for de fato confirmada, isso pode ter profundas implicações nas teorias sobre sua formação e mesmo da evolução da vida nele. Segundo Redfern, as teorias atuais sugerem que o núcleo interno da Terra só começou a se solidificar entre 500 milhões e 1 bilhão de anos atrás, se expandindo a uma taxa de meio milimetro por ano. Este processo teria sido o responsável pelo surgimento do campo magnético que protege nosso planeta, e toda a vida nele, dos piores efeitos da radiação solar. Mas as diferentes orientações dos cristais metálicos no núcleo interno encontrados por Song e equipe indicam que “algo significativo” deve ter acontecido logo no início de sua formação para isso ocorrer. Além disso, lembra ele, análises de rochas antigas da superfície da Terra apontam que seu campo magnético também mudou de orientação há cerca de 500 milhões de anos.
“Pode ser que este estranho alinhamento que os pesquisadores encontraram no núcleo interno explique estas estranhas assinaturas paleomagnéticas das rochas antigas que estavam presentes no equador meio bilhão de anos atrás, e algumas pessoas correlacionaram isso com a abrupta aceleração da velocidade de evolução de novas formas de vida chamada ‘Explosão Cambriana’”, escreveu Redfern em comentário sobre o estudo de Song em sua coluna no site “The Conversation”.
Fonte: O Globo
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