segunda-feira, 2 de agosto de 2010

A fome revelou um herói brasileiro

Tudo começou na faculdade, logo no primeiro semestre. Eu ouvi um amigo falando algo sobre o "Homem-Caranguejo" ou "Homem-Gabiru". Na santa inconsequência de alguém que até ali se alimentara mais do que devia de cultura pop, imaginei que se tratava de um novo herói. Afinal, eram tempos em que o Homem-Animal dominava os gibis no Brasil.

Homem-Animal é um personagem obscuro dos quadrinhos que se tornou cult nas mãos de um escritor acima da média, Grant Morrisson. Tinha o poder de copiar temporariamente as habilidades dos animais, como a velocidade de um leopardo, o voo da águia ou a força de um inseto.

Suas histórias traziam mensagens não muito populares na época, como o terrorismo ambiental e o aquecimento global. Tudo parecia papo de ficção científica ou reservado ao limbo acadêmico. As histórias do Homem-Animal ajudaram a prenunciar os atuais dilemas ecológicos. E as narrativas eram demais. Lia gibis e gostava dos desenhos, mas me ligava mesmo nas histórias. Ainda hoje lembro de escritores que me fascinavam: Jack Kirby, Roy Thomas, Stan Lee, Frank Miller.

O Homem-Caranguejo estava longe de ser o Homem-Animal, descobri depois. Nascia um novo herói para mim: o médico pernambucano Josué de Castro, um dos nomes fundamentais da vida social e política do país.

Josué de Castro era médico, sociólogo, nutricionista, antropólogo, humanista. Era também um retirante nordestino. Saiu da região, fugindo da seca, como tantos outros, para se aventurar em terras que não eram suas.

Formou-se em Medicina aos 21 anos, no Rio de Janeiro. Três anos depois apresentou a tese "O problema fisiológico da alimentação no Brasil", sinalizando a importância que o estudo da nutrição teria em sua trajetória. Ensinou em Recife e no Rio de Janeiro. A geografia humana era tema recorrente, a fome também. E publicou o espantoso Geografia da Fome, em 1946, livro que mexeu comigo como poucos.

Se você tem um mínimo sentimento humanitário, uma busca qualquer por um cristianismo que vá além da subjetividade e um desejo de conhecer melhor o seu país ou mesmo a América Latina, não tem jeito: pare tudo agora e vá ler Geografia da Fome.

Josué de Castro descobriu a fome nos manguezais. Vendo o homem ali, mergulhado na lama, catando caranguejos para sobreviver, daí o personagem que criou.

Ao estudar a fome, se tornou um indispensável agitador social e político. Com ele aprendi que a fome é multifacetada. Existe a fome individual e coletiva. A fome total e parcial. A fome específica e a fome oculta. O grande objetivo era denunciar a fome como algo presente no cotidiano das pessoas. Mostrar que era um crime, e era inaceitável.

Li depois Fome, um Tema Proibido. Outra paulada. Veja o que ele escreveu:

"Foi assim que, pelas histórias dos homens e pelo roteiro do rio, fiquei sabendo que a fome não era um produto exclusivo dos mangues. Que os mangues apenas atraíram os homens famintos do Nordeste: os da zona da seca e os da zona da cana. Todos atraídos por essa terra de promissão, vindo se aninhar naquele ninho de lama, construído pelos dois e onde brota o maravilhoso ciclo do caranguejo. E quando cresci e saí pelo mundo afora, vendo outras paisagens, me apercebi com nova surpresa que o que eu pensava ser um fenômeno local, era um drama universal. Que a paisagem humana dos mangues se reproduzia no mundo inteiro. Que aqueles personagens da lama do Recife eram idênticos aos personagens de inúmeras outras áreas do mundo assolados pela fome. Que aquela lama humana do Recife, que eu conhecera na infância, continua sujando até hoje toda a paisagem de nosso planeta como negros borrões de miséria: as negras manchas demográficas da geografia da fome."

Lembrei desse texto quando visitei, semana passada, famílias desabrigadas pela enchente no Nordeste, para uma ação de emergência. O mundo era lama apenas. As pessoas tentavam recolher da lama objetos pessoais, eletrodomésticos, comida, documentos, memória. Impossível não lembrar do Homem-Caranguejo.

Impossível também esquecer que, mesmo com o oba-oba oficial, a fome está mais perto da gente do que se imagina. Com exceção do Brasil, a América Latina e Caribe têm mais pobres e miseráveis hoje do que na década de 80, segundo a FAO. Mesmo o Brasil da Era Lula tem o desafio de tirar da indigência 35,5% da população, segundo o IBGE. É gente demais. E é algo que tem a ver, sim, comigo e com você.

(Heron Santana)

Fonte: Outra Leitura

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